Page 112 - Uberaba-200 anos no coracao do Brasil
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te o inverno seco. Neste relato, ele não é apenas o naturalista preocupado com plantas, ele é o observador
atento, que soube expressar de modo privilegiado a sociedade em mudança e a paisagem.
Quanto à vegetação do Cerrado da Serra da Canastra, ele fala que: “À exceção da Serra Negra, não vi
em nenhuma outra parte uma variedade tão grande de plantas […]” (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 108). E, quanto
aos tratos com a fauna, ainda na Serra da Canastra, cita um “costume” local:
Durante todo o dia, o único animal que encontrei foi um macaco. Como já disse,
os habitantes do sertão são todos caçadores entusiastas, matando qualquer animal
cuja pele possa ser objeto de comércio. Não passei por única propriedade que não
contasse com numerosos cães de caça.
Quando me achava na Fazenda do Geraldo, os cachorros da propriedade
mataram um filhote de anta. (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 108)
De modo geral, o que se percebe é uma realidade em mudança, sendo relevantes, como fatos histó-
ricos e econômicos dignos de nota, o esgotamento das minas de ouro na área central da província, seguido
da dispersão da população em direção às novas áreas com finalidade de exploração agropecuária, e o ani-
quilamento da população de quilombolas e indígenas. No caso dos quilombolas, a prática era reconduzir
os aprisionados às fazendas de origem; no caso dos indígenas, era o aldeamento, o controle do território e,
também, a escravidão (GIRALDIN, 1997).
O que se constata na passagem do século XVIII para o século XIX é a realidade em transformação social,
com alterações significativas na paisagem, afetando, como se observa nas afirmações do naturalista, a socie-
dade, a flora e a fauna. No primeiro caso, no aspecto social, saem de cena as populações originárias com seus
saberes e práticas, e, com a destruição dos quilombos, alteram-se as condições de luta pela liberdade dos
trabalhadores escravizados. Entram os proprietários rurais, os comerciantes, a igreja e a administração pública
comprometida com a oligarquia rural em formação, os quais desde o início do século XIX recorreram ao
instituto das sesmarias para ocuparem as terras “vazias” do Cerrado. No segundo caso, no aspecto ecológico,
ocorre a introdução de novas espécies agrícolas: no lugar do amendoim, do inhame e da batata, entram o
arroz, o feijão, o milho etc.; no lugar da fauna nativa, entram o gado, os cavalos, os muares, os porcos, os
cachorros etc. Como escreveu Saint-Hilaire (1975, p. 151): “As terras de Farinha Podre são igualmente favorá-
veis à cultura do milho, de cana-de-açúcar, do feijão e do algodão […].”
Em sua narrativa, no tocante à flora nati-
va, algumas espécies merecem atenção. Uma
delas, presente em vários trechos, é o buriti. Ao Renato Muniz Barreto Carvalho
final do seu percurso na região, quando se pre-
parava para cruzar o Rio Grande em direção à
província de São Paulo, menciona a palmeira:
“O imponente buriti ainda surgia ali no meio dos
brejos, mas eu já me aproximava do seu limite
meridional” (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 150).
O buriti tem várias denominações regio-
nais, dentre elas: coqueiro-buriti, boriti, miriti etc.
Ocorre do Pará, Maranhão e Piauí até São Paulo
e Mato Grosso do Sul, “invariavelmente em bre-
jos de várias formações vegetais. Sua presença é
tão característica e notável que emprestou seu Buriti
nome a várias cidades, palácios, parques, ruas,
etc.” (LORENZI, 1998, p. 281). A população rural tradicional da região ainda costuma usar suas folhas em peças
de artesanato, bolsas, tapetes, caixas e bijuterias. É muito comum o uso da rolha feita do talo (pecíolo) das
folhas para fechar garrafas e vidros de compotas. Do fruto se fazem doces, sorvetes, polpa, sucos e licores. A
planta resiste ainda hoje nas veredas e serve de alimento para vários mamíferos e aves, mas perdeu a “prima-
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