Page 111 - Uberaba-200 anos no coracao do Brasil
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Posteriormente, nas décadas de 1960 e 1970, para o preenchimento do “vazio” representado pelos cha-
padões “incultos” e pela Amazônia, foi desenvolvida a ideologia da “integração nacional”, tão cara ao regime
militar de 1964. Mais uma vez, o que estava em jogo era o domínio sobre a produção brasileira, incluindo, é
claro, o controle sobre as pessoas e o território.
Apesar do aumento considerável da produção brasileira no século XXI, considerada em termos abran-
gentes, três culturas concentram mais de 60% do valor total da produção: a soja, a cana-de-açúcar e o milho.
A soja representou 46,5% da produção deste grupo de produtos, seguida do milho, com 40,7% (IBGE, 2016,
p. 18). A cidade de Uberaba, na safra brasileira de 2015, se destacou como o 4º município em produção de
cana-de-açúcar, cuja cultura ocupa uma área de 73.720 ha, com produção de 6.266.200 ton. (IBGE, 2016, p.
35). A monocultura tornou-se a maior ameaça ao meio ambiente, comprometendo o as nascentes, o solo, as
veredas, os animais, o modo de vida rural tradicional e a saúde dos seres humanos.
DUAS VISÕES DA NATUREZA E DA SOCIEDADE DO INÍCIO DO
SÉCULO XIX
Não foram poucas as tentativas de mostrar e entender as transformações do território desde o século
XVIII. No caso de Uberaba, dois documentos dos primeiros anos do século XIX chamam a atenção por con-
terem subsídios essenciais para a caracterização do lugar e da nova sociedade que se instalava na região. Não
foram os únicos, mas foram os que, de forma privilegiada, deram importância maior aos aspectos naturais da
região. O primeiro deles é o relato de viagem do naturalista francês Auguste de Sant-Hilaire, e o outro é a carta
do Padre Leandro Rabelo Peixoto e Castro. A relevância que possuem é a de permitirem alguma comparação
entre os séculos XIX e XXI no tocante às diferenças entre as realidades socioambientais em cada momento
histórico.
Auguste de Saint-Hilaire nasceu na França em 1779. Sabe-se que foi um viajante disposto e extraordiná-
rio observador. Permaneceu no Brasil, onde fez inúmeras coletas e pesquisas, entre os anos de 1816 e 1822.
De volta à França, deu início aos estudos e reflexões que resultaram numa extensa obra, fundamental para o
entendimento da sociedade e do território do Brasil Colônia. Estudou, em especial, a flora nativa do país, mas
seus relatos são importantes para se conhecer a história, os costumes, os povos indígenas com os quais teve
contato, o clima das regiões por onde andou, além de informações diversas sobre cidades que estavam sur-
gindo naquele instante. Faleceu em 3 de setembro de 1853, mas até hoje sua obra é estudada e reverenciada.
Numa de suas viagens pelo Brasil, vindo de Goiás, em setembro de 1819, passou pelo Triângulo Minei-
ro, tendo permanecido na região por cerca de vinte dias. Encantou-se com o chapadão: “Entre Uberava [era
desta forma que se escrevia o nome da cidade de Uberaba no início do século XIX] e Tijuco, num trecho de
5 léguas, atravessamos a planície mais regular que eu já tinha visto desde que chegara ao Brasil.” (SAINT-HI-
LAIRE, 1975, p. 149).
No caso específico de sua passagem pelo Cerrado no Triângulo Mineiro, merece especial considera-
ção o livro “Viagem à província de Goiás”. Esta obra foi publicada no Brasil, pela primeira vez, em 1937, com
o título de “Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goiás”. Antes, em 1847, tinha sido
publicada na França com o título de “Voyage aux sources du Rio S. Francisco et dans la Province de Goyaz”,
dividida em dois tomos. Na década de 1970, a Editora Itatiaia, com a colaboração da Editora da Universidade
de São Paulo, providenciou novas edições da obra do naturalista francês.
No primeiro tomo, “Viagem às nascentes do Rio São Francisco”, o autor descreve suas impressões
sobre a região: “O chapadão é totalmente despovoado e sem cultivo. Suas terras nem mesmo têm dono
(1819), mas os proprietários das fazendas localizadas na base da montanha levam seus animais para pastarem
ali.” (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 108). Nesta passagem, ele cita um costume que permaneceu por muitos anos,
praticamente até a década de 1980, que era o de os fazendeiros utilizarem as pastagens novas e verdes dos
campos altos no início da primavera, poupando assim os pastos das baixadas desgastados pelo pastejo duran-
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