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Ladrão de Casaca                             dia de festa. Ele, sem motivo aparente,

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                          Era um barulho cadenciado. Na sala?        em mim. Não percebi nele nem ódio
                       Ou lá fora, no pequeno pátio.  Um vento       nem maldade, apenas um sorriso triste.
                       frio filtrava-se pelas venezianas, insistente.   Parecia  condoer-se  de  mim.  Falou,

                       Novamente o barulho. Ritmado, como            mansamente: “Os conceitos de vocês, que
                       passos de alguém andando de um lado           se dizem cristãos, são belas teorias. Vocês
                       para outro. Levantei-me. Descalço,            crêem em Jesus e dizem que o amam,

                       deixei o quarto evitando qualquer ruído.      mas vocês não o conhecem nem o amam.
                       Não queria provocar a fuga de um              Você começou acusando-me de invadir

                       provável intruso. Cuidadosamente abri         sua propriedade. Entrei lá,  é verdade.
                       a porta. Bem no meio da sala, ao lado         Você já sentiu fome? Você já ouviu dizer
                       da mesinha, estava um homem. Imóvel.          que, quando a fome é insuportável, as

                       Olhava-me fixamente. Curiosamente,            propriedades se tornam comuns? Os donos
                       não senti medo algum. Era um senhor           do mundo, quando se tornam incapazes

                       de meia idade. Não parecia um ladrão.         de raciocinar retamente, dizem que isso
                       De paletó e gravata, terno já desgastado,     é comunismo. Não é.  Deus destinou
                       mas limpo. Seus cabelos eram grisalhos,       a terra para todos. Os mais fortes se

                       olhos grandes, escuros. Não se movia. Só      apropriaram dela. Eu não queria roubar
                       me olhava, sério. Quebrei o silêncio: “O      sua casa, queria apenas um pedaço de seu
                       que o senhor está fazendo aqui dentro de      pão que se tornou nosso. Você nada me

                       minha casa, às duas horas da manhã?”          perguntou, apenas me chamou de ladrão.
                       Sua resposta foi mansa: “Procuro um           Quis chamar a polícia, que não é aliada
                       pedaço de pão ou qualquer coisa para          dos que passam fome. É aliada dos que

                       comer. Fome não tem horário.” Fiquei          têm o poder. Os ladrões são outros. Estão
                       mais agressivo: “Além do mais, o senhor       bem protegidos pela lei que eles mesmos

                       está invadindo minha casa. O senhor não       fizeram.  Os  verdadeiros  ladrões  estão
                       sabe que invadir propriedade particular       na política, no governo, nos ministérios,
                       é crime? Há lei regulando isso. Posso         no senado, nas câmaras dos deputados e

                       chamar a polícia.” Ele não se ofendeu.        vereadores, nas prefeituras. Os grandes
                       Afastou-se. Abriu a porta da frente e         ladrões  estão  também  no  judiciário.

                       caminhou em direção do jardim. Parou          Difícil de acreditar.  Sabe quem os
                       bem no centro do gramado. Estranho!           colocou lá em cima? Você. Você acreditou
                       Havia gente circulando como se fosse          nas mentiras deles e os colocou no poder.



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